quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Marrocos Lés a Lés (Parte 2 A VIAGEM)


A PARTIDA:

O tempo esgotou-se. Estava na hora.

Ia começar a viagem por mim já vivida durante 4 meses de intermináveis pesquisas na Net até alta madrugada, viagens no imaginário apenas interrompidas pelo cansaço ou pela luz do dia seguinte que me arrancava do sonho devolvendo-me à realidade, viagens noutra pessoa que no seu relato eu bebia conjugando-as na primeira, experiências que alguém como eu, algures no mundo, tinha sentido esta mesma febre de regresso, retorno ao que nunca viu mas sente que lhe pertence, essa África esquecida onde tudo começou um dia e alguma coisa em mim não o esqueceu.

Iria começar em Marrocos mas sabia que lá iria ficar preso nas areias berberes e se seguiriam inevitavelmente outras paragens mais a sul... Mauritana, Mali, Guiné... ÁFRICA NEGRA. Esta viagem não a sentia já como uma descoberta, talvez apenas a concretização porque se o coração estava em Marrocos, a alma já fugira para mais longe e o sonho já andava nos trópicos!

Era meia noite de quinta feira, as quintas do cafezinho das Varas em Lisboa, e dali mesmo me despedia dos meus amigos levando comigo os seus abraços fraternos e um pouco de cada uma das suas almas que, entre olhares e gargalhadas, me saltaram para a bagagem como amuleto de boa sorte.

Arranquei pela noite dentro, como caravela pelo breu do mar, largando em Belem, à vista dos que, em porto seguro, vibravam já com a aventura que me esperava.

Filme sem locução de texto: "A Partida de Lisboa" 5:20


1ª ETAPA (2º dia): CEUTA/CHECHAOUÉN/FES
(100% alcatrão N13, N2, N8 e R509) 350 Km {total:1050 Km}
nota: Paragem para almoço e visita a CHECHAOUÉN e a sua medina

Rolava agora só para sul... na minha mente confundia-se a recordação de uma despedida calorosa dos meus amigos do CVP e a expectativa do que me esperava lá mais para baixo. Que família fantástica esta, das Varas, que me acompanharam em cortejo até Setúbal. Muitas vezes me iria lembrar deles nos 12 dias por terras dos Mohameds.

Chegado a Faro lá estava o meu companheiro de aventura, impaciente, olhando o relógio de 10 em 10 minutos há já quase 1 hora. Partimos rolando rápido. As VARAS tem essa habilidade fantástica de rolarem a 180 Km por Auto Estrada, carregadas, e apenas usando 6000 das 9500 rotações do motor... queria agora confirmar que também no pó elas não se fariam rogadas enfrentando pistas de verdade, de dezenas ou mesmo centenas de Km.
A travessia e a Alfandega não têm historia. Alá estava de bem comigo e tudo correu pelo melhor. Estava finalmente em África.

Até TETOUAN foi para descomprimir do stress até então intenso, e trocar de cabeça, instalando novo software do tipo "OPEN MIND". Tudo me parecia muito estranho, os Táxis a caírem de velhos, as pessoas sentadas no pó do chão, as lojas encaixadas em cubículos de vão de garagem, os vendedores que se espalhavam pelos passeios... Mas tudo isto se tornaria muito normal no final minha estada.

CHEFCHAOUEN era o meu primeiro WP. A cidade azul... "qual azul qual carapuça". Percorria de pé sobre a minha Vara os buracos das vielas empoeiradas de uma cidade suja de gente oclusa, de olhar escondido, que mudavam de passeio (se existissem passeios) se nos viam na sua direcção. Já me perguntava se afinal Marrocos não seria uma enorme mentira. Aguardar-me-iam duas semanas "daquilo"?. Continuei subindo e descendo ruelas onde os homens se amontoavam nas bermas e as crianças se atravessavam no caminho e... encontrei finalmente a Medina... lá dentro, como ovo de Pascoa escondido, a gema azul de que falavam.



As pessoas viravam a cara ou tapavam-na mesmo à nossa passagem dizendo-me claramente que era um intruso indesejado mas estávamos no Ramadão e aquela gente não comia nem bebia há 8 ou 9 horas. Muitas lojas estavam mesmo fechadas. Encontrar pão por exemplo antes das 17 horas seria quase impossível nos próximos 3 dias. Passeei pelas estreitas ruas da Medina, parte antiga da cidade murada, onde a luz se reflecte num azul bebé, onde as lojinhas se aninham em pequenos espaços de 4 ou 6 metros quadrados e no meio das suas mercadorias, imóvel como as sacas de feijão a seu lado, um "Mohamed" recita o Corão num choro arrastado. Os becos estão limpos e as janelas decoradas. Lembrei-me da Mouraria em Lisboa mas vestida de outra cor, com outra luz, outros cheiros e outros figurantes; Elas de cara escondida na "Turba" onde o rosto se resume ali a dois enormes olhos negros. Não são apenas olhos grandes e escuros, não, são enormes e de cor de carvão, faiscando enigmáticos olhares que nos penetram por breves segundos. Eles de túnicas encapuçadas que cobrem tudo libertando apenas as mãos e a cara, uma cara de tez escura, geralmente de bigode negro e um branco ocular que emana do fundo do capuz.

Tinha tido o meu primeiro prémio. A MEDINA DE CHEFCHAOUEN. conquistara-o com perseverança não cedendo às primeiras impressões menos boas, agravadas pelo cansaço que me começava a castigar. Olhei o relógio. Era hora de almoço e se os marroquinos não comiam há 6 ou 7 horas eu não dormia há 30h. Montei a Vara procurando refugio para abrir uma lata de conserva e encontrar forças para os próximos quase 300 até Fes... mas não ia ser fácil... mesmo nada fácil.

De CHEFCHAOUEN para FES podia ter optado pela N13 mas arrisquei a ir pela N2 por KETAMA, zona dos campos de rif e... dei-me mal.
A paisagem de montanha agiganta-se sobre a Vara. As montanhas não tem fim. Depois de uma vem outra e já estou a 2000 m de altitude. As cidades, BAB-TAZA, BAB-BERRET e KETAMA são fotocópias ampliadas de todas as outras vilas entre elas. Sujas e cheias de gente. No ar paira um odor a roupa suja e as ruas estão apinhadas de gente que parece não ter que fazer. Centenas de homens no meio da "rua" assaltam-me á minha passagem, correndo ao lado da moto, gritando ofertas de vendas de droga. Preciso comprar água. O Camelbag está vazio mas resolvo não parar. Procuro uma esplanada onde possa repousar um pouco e beber qualquer coisa, mas não há nada parecido com um café. Na minha primeira tentativa fico com 20 homens á minha volta que gritando e gesticulando, se empurram entre si disputando um espaço junto da moto. Sorrio simpaticamente e aceno que não, não quero nada, mas eles não desarmam. Arranco de novo. As vilas sucedem-se sempre no mesmo ritual. O cansaço começa a vencer-me. Tenho dificuldade em concentrar-me na estrada. Os olhos pesam-me terrivelmente e as curvas sucedem-se a 2000m de altura com ladeiras de precipícios. Preciso de parar mas nas vilas já descobri que vai ser impossível. De repente a moto segue em zigue zague e descubro que adormeci ao "volante" (guiador) por uma fracção de segundo. Um carro persegue-me agitando-me qualquer coisa pelo vidro. Aceno que não quero sorrindo e passo-o. Ouço uma derrapagem a trás de mim. É o mesmo carro. Ele ainda não desistiu e persegue-me forçando-me a ir para a valeta. Paro e a rir (...por fora e a resmungar por dentro) digo-lhe que não quero nada e que assim ainda me vai fazer cair. Já não tenho sono. A perseguição continua e por mais duas vezes me força a sair do alcatrão entrando na berma rendilhada de pedra. Os Km sucedem-se e ele não desiste. Já devo ter feito 20 km em más companhias e eu prefiro maus caminhos com bons amigos. Cansei. Duas a baixo e vamos por a Vara a curvar. O coração dispara ao ritmo das rotações do motor. Queria aventura mas não exactamente este tipo. Pelo espelho vejo o carro desaparecer no pó da estrada... não me consegue acompanhar e continuo em louca corrida por mais uns km. Estou safo... e o Jorge?!!!. Tinha-me esquecido que o Jorge é Alentejano e guia como tal... sempre sem pressas. Paro a Vara. Olho impaciente pelo espelho mas a silhueta do Jorge não se desenha nele, e quando me preparo para voltar para trás lá vem o Jorge, sem pressas, saboreando cada curva com todo o tempo do mundo. Seguimos viagem e de novo o mesmo carro. Desta vez resolveu fazer uma abordagem mais radical e atravessa-se no meio da estrada e saiem dois homens. Não abrando e passo-lhes uma tangente. 2 Km á frente é o fim do concelho e o fim do rif. Entramos em TOUNATE. Agora os traficantes são discretos e em muito menor numero. Por vezes uma patrulha da policia em operação de "Stop" que nos manda seguir. Não é para nós que eles ali estão e terá sido por isso que o meu “amiguinho” do carro terá finalmente desistido á saída do seu concelho.

No fim da minha estada em Marrocos conheceria 4 Marrocos. O Marrocos da zona do rif a evitar, o Marrocos do Atlas dos Berberes (gente fantástica e amistosa), o Marrocos do deserto dos Tuaregues (gente tímida, reservada mas prestavel) e o Marrocos litoral das grandes cidades que não sendo nada parecem ser um pouco de tudo.
Cheguei finalmente a FES onde um bom jantar e um prolongado sono no Hotel me recompuseram para finalmente saborear, julgava eu, uma pistazinha no dia seguinte no Bosque dos Cedros em AZROU.



Filme sem locução de texto: "1ª Etapa " 8:05


2ª ETAPA (3º dia): FES/MIDELT
(100% alcatrão N8 e N13) 250 Km {total:1300 Km}
nota: Manhã livre para visita a FES e a sua medina com almoço

FES acordou esplendorosa sem as nuvens do dia anterior. Depois dum pequeno almoço muito ocidental queria visitar o Palácio Imperial, a Medina e seguir viagem para o deserto. Alguém me perguntou se precisava de guia e saiu em corrida desenfreada na sua lambreta de pedais reaparecendo passados poucos minutos com o Sr. Abdul, de óculos Raybin e chinelos de pele de dromedário.

Apanhei um Mini Táxi, como todos os outros, um velho Fiat Uno 45, dum vermelho comido pelo sol, com interior de estofos rasgados e um cheiro quente a gente, onde a musica do rádio com MP3 se abafava no ruído dos amortecedores e no bater das folgas das portas. Nas ruas a loucura: Desde Burros, carroças de burros, charretes de cavalos, Renauts 12, 16, 18TL e 5 Laureatte, Fiats 127 entre outros, carros que julgava extintos da circulação, a todo o tipo de lambretas, triciclos e bicicletas. Todos procurando um espaço para passar porque as faixas pintadas no chão e os riscos contínuos a separar os dois sentidos são elementos decorativos. Estou numa pista de carrinhos de choque, e a todo o momento espero ver uma lambreta entrar pela janela… a sinalização nos cruzamentos é básica originando o caos com dezenas de carros parados, todos os que, não querendo seguir em frente, aguardam uma oportunidade para a virada e vão formando 2, 3, 4 filas que se alargam na via principal.

Nas lambretas ninguém usa capacete na cabeça, alguns utilizam-no para proteger o farol… faz sentido! Os espelhos retrovisores estão virados para dentro de mãos postas em oração… não fazem falta... só atrapalham! Estas lambretas transportam de tudo. Á entrada da Medina uma destas super bicicletas motorizadas transportava o condutor e na pendura uma mulher vestida de panos, da cabeça aos pés, a esvoaçarem ao vento. Entre ela e o condutor um criança de 2 anos e à frente, ao colo do condutor, outra criança de 5 ou 6 segurava-se como podia ao guiador com as suas duas mãozitas e olhar pregado na estrada enquanto a mulher atrás segurava o bebé na mão direita e uma enorme mala na mão esquerda. Incrível! Bilhas de gás, canalizações de 3 metros, mil garrafões de agua vazios atados entre si formando um gigante molho de balões amarrados às costas do condutor…e tudo o mais que se possa imaginar. Absolutamente surreal!

Os Táxis de longo curso (Dinossauros Mercedes 200D) transportavam 4 e 5 pessoas atrás e 2 ou 3 à frente num total de 9 pessoas com o motorista. As pessoas esticavam o braço, eles paravam, e cabia sempre mais um. Era o chega para lá. Nunca descobri como seria na hora de sair e de pagar. A viagem da cidade nova, onde estava o hotel, até à cidade velha do século VII onde queria ir, marcou no taxímetro 14 dirham (cerca de 1 euro e 40 cêntimos). Abdul combinara um preço de 200 dirham (20€) para todo o dia o que me pareceu um bom negócio. No final pagaria cerca de 400 com as entradas e táxis incluído (dizia o Abdul) mas com algum oportunismo do árabe (digo eu) que se apercebeu da minha pressa de partir para sul e se trocou nas contas de somar!!!!



A MEDINA DE FÉS é uma visita obrigatória. Entrei na porta sul e percorri as varias ruelas até à porta norte. São vários Kms. A medina tem mais de 20 portas. Marrocos é uma terra de contrastes. Saltar da cidade nova para a Medina do século VII é retroceder no tempo centenas de anos. As lojas são pequenos buracos atulhados de mercadorias e as paredes tão depressa estão apoiadas em estacas de madeira prestes a ruir, como exibem rendilhados embutidos em belas formas arquitectónicas.



Os artífices artesões trabalham os seus materiais à vista de todos … bronze, madeira, tapeçaria, tecelagem… As ruas de metro e meio de largura misturam as cores dos transeuntes numa massa única que se desloca lentamente como magma de gente. Parar origina engarrafamento… de repente uma gritaria… todos se afastam e da esquina mais próxima aparece um burriquito carregado de sacas, com o seu condutor gritando buzinadelas em dialecto árabe. As visitas sucedem-se sempre surpreendendo-me com as belezas que descubro. Os tapetes, os tecidos que ainda no tear vejo nascerem, uns de algodão que vejo ser fiado, outros de linho que vejo ser extraído do cato de piteira, os odores insuportáveis das tinturarias de peles, peles de cordeiro, de vaca e de dromedário (a melhor e mais cara de todas), a farmácia berbere de produtos naturais onde me expus a algumas experiencias curandeiras e fiz uma tatuagem berbere no braço (à semelhança do que as mulheres fazem nas mãos e)… a primeira faculdade de Marrocos…e…e…e foram 4 horas de descobertas.




Acabei num restaurante escondido num beco da Medina, “RESTAURANT DAR TOURIA” onde almocei principescamente, em quantidade, qualidade e preço (300 dirham por refeição, cerca de 30€. A refeição mais cara de toda a minha estada em Marrocos). Umas entradas fabulosas (e poderia ter ficado por aí), uma “Pastilla À la Fassie” (uma espécie de bolo folhado com tâmaras carne e canela) e uma “Tangine de Kefta au Oeufs” a melhor tangine das muitas que comeria em toda a viagem (uma espécie de carne guisada com legumes servida numa frigideira de barro).

Estava encantado com a visita por Fes e em particular à maior Medina de Marrocos mas queria sair da cidade. Precisava saltar para a minha Vara e cavalgar para as dunas... fiz-me à estrada.

MEKNÈS ficava ali ao lado, e tinha inicialmente alimentado a esperança de a visitar e às suas ruínas romanas, mas a tarde já ia avançada e talvez a Floresta dos Cedros me pudessem reservar o tão desejado trilho. Estava farto do tapete negro.

O Caminho para IFRANE e AZROU é lindo. A estrada serpenteia pela encosta ladeada de cedros majestosos. O relógio não para e eu sinto AZROU muito perto. Os cedros são cada vez mais frequentes mas daí a ser uma floresta... Aumento o ritmo de andamento. Não quero chegar à floresta de noite. Se necessário dormirei no mato encostado à minha Vara mas quero descobrir um trilho que vai de AZROU para KHENIFRA e daí para MIDELT utilizando a parte final do conhecido Cirque de Jaffar. A noite aproxima-se e a floresta esconde-se de mim… não a encontro… continuo sempre até uma placa que me faz parar. Tem escrito “MIDELT”. Descobriria mais tarde que deveria ter saído da estrada principal para entrar em AZROU, 3 ou 4 Km a Oeste, onde encontraria o meu sonhado trilho.

Procurei onde dormir. Por 30 dirham mais 10 para a garagem da moto tinha a pernoita garantida. Dias antes tinha ali ficado o meu amigo Rui Baltazar da Touratch e o Carlos da Motociclismo. Fiquei à conversa pela noite dentro, com os irmãos Rachid e Mohamed na sua lojinha de "recuerdos" "MAISON BERBERE" que no Ramadão vive-se de noite e viajar é acima de tudo “VIVRE AVEC”. Não era ainda hoje que levaria a minha Vara para maus caminhos mas Alá encarregar-se-ia de me compensar com dificuldades acrescidas. Era uma questão de tempo


Filme sem locução de texto: 2ª Etapa 15:14




3ª ETAPA (4ºdia): MIDELT /ERG CHEBIL
(90% alcatrão N13 )-275 Km {total:1575 Km }

Era chegada a hora. Ia finalmente partir para as dunas do deserto. E se nestes dois primeiros dias subira e descera montanhas, geralmente a cima dos 2000 metros, onde por vezes o frio me obrigara a colocar o forro do blusão e a calçar as luvas de inverno, agora a planície árida dominava a paisagem e as temperaturas forçaram-me a vestir a minha armadura sobre uma t-shirt de mangas para me proteger do sol.



O vento quente gretava-me os lábios e no horizonte apareciam os primeiros oásis, gotas de vida salpicando o chão arenoso, pequenos palmeirais sinalizando a presença de água.




As vilas misturavam-se na cor da terra vermelha, como se as casas fossem apêndices rochosos da mãe Natureza. As acácias espalhavam-se pela planície no convite traiçoeiro da sua sombra tão apetecível repleta de espinhos. Parar ali a moto seria furo na certa.

As povoações são pequenas e tudo se concentra em torno da estrada que as trespassa. O Ramadão ainda não terminou e as lojas continuam na maior parte das vezes de portas fechadas. As crianças correm à rua para me dizer adeus e mesmo as mães param o trabalho para me acenar. Sinto-me bem ali. É gente simples e hospitaleira.

Paro numa loja. Compro agua e peço cigarros. O jovem mostra-me um maço já aberto. Eu explico que quero comprar um maço completo e não cigarros avulso. Sai a correr e regressa com um maço “Marquise”. Ok, disse eu, quero 3 ou 4. Olha-me confuso e sai de novo a correr. Fui à porta para perceber o que se passava e vi aquele homem sprintar até à outra extremidade da aldeia, regressar correndo e entregar-me ofegante os 3 maços que pedira. Aqueles 3 maços eram todo o tabaco da aldeia… não me podia arranjar 4.

Quando paro a moto aproxima-se sempre um bando de crianças. Faço a magia dos rebuçados a sair dos bolsos, do escape da moto, das orelhas… elas olham espantadas de olhos pregados nas minhas mãos e despejam sobre mim o mais lindo sorriso do mundo quando ganham o doce. Vestem t-shirts sujas a condizer com o cabelo empoeirado em desalinho e as unhas negras de terra, mas quando as acaricio com uma festa no rosto, tem as bochechas macias como todas as crianças e sinto em cada uma a pele da minha filha Laura de 4 anos. São crianças felizes que aprenderam o dom da entrega como todo o povo berbere, sem ressentimento pela diferença, sem falsas cortesias. Riem porque lhes somos simpáticos, ajudam-nos porque precisamos uns dos outros. Estas crianças são o espelho mais nítido dos seus pais e avós, são o espelho deste povo acolhedor… e existem aos montes. Nunca viajei para um pais onde visse tanta criança.

3 ou 4 dias mais tarde, perdido no meio do nada, algures num trilho do atlas, onde se avista uma casa de vez em quando, ao parar numa encontro, para minha surpresa, uma dúzia destes diabinhos. Explicam-me que não são todos da casa. Alguns são primos e outros moram nas casas mais próximas e vem brincar juntos. Mais próximas???… olhei á volta e só vi montes. Caminham Kms e surgem de todo o lado. Fiquei pensando que aquelas crianças, tão longe de tudo, não teriam oportunidade duma educação mínima mas o patriarca da casa retorquiu dizendo-me que, desde que não nevasse, todos os dias havia escola e estentendo o braço apontou-me uma casita escondida no desfiladeiro a umas quantas horas de caminhada (para mim claro !!!)

ER-RACHIDIA, ERNOUD
e RISSANI são as ultimas cidades antes do ERG CHEBBI em MERZOUGA. Estava em ERNOUD e daqui para a frente olhava mais para o GPS que para a paisagem. Ia entrar no meu primeiro trilho em África… FINALMENTE.


Mas os Kms sucediam-se e eu impacientava-me. No leito preto desaguavam varias linhas de terra me convidando à entrada mas o Jorge seguia sempre, indiferente, apenas respeitando as instruções do seu GPS. Finalmente virei à esquerda e entrei no pó. O trilho, marcado pelos rodados dos 4x4, era fácil de seguir e sem armadilhas. Lembrei-me do meu amigo Luís Calado que não classificaria aquilo de off-road mas de estrada sem alcatrão. Para a sua Pan seria coisa para ser feita a 60 ou 80 km/hora. De pé sobre os estribos da montada, o vento enchia-me a alma integrando-me na imensidão duma planície sem fim. Tudo á minha volta era infinito… a terra vermelha, o céu azul e a minha felicidade. Rolei assim tempo e tempo sem medida, que ali o espaço temporal tem outra dimensão. A Vara portava-se com autoridade, rabeando com rebeldia numa aceleração mais violenta ou uma curvita mais atrevida… baixei-me para olhar o velocímetro… 80Km. Olhei para o lado e por momentos vi a silhueta do Luís e da sua Pan… miragens do deserto.

Os trilhos agora cruzavam-se formando um labirinto de opções, mas depressa percebo que todos vão dar ao mesmo lugar. Agora, mais afastado do alcatrão, mergulhado nas terras ensanguentas da planície, os regos sulcavam as entranhas aqui e acolá, feridas de veículos pesados em tempo recente de chuvadas. Por vezes distraio-me e de repente fico dentro dum. Era profundo e ligeiramente em curva. Olhei a saída, foquei a mirada, posição de combate (rabinho para trás) e rodei a mão direita. Num segundo estava livre e olhando o céu mandei um abraço ao Carlos (dos MotoXplores) que me sorria satisfeito. Muitas seriam as vezes que o meu pensamento viajaria até a Quinta em Avis onde fizera um curso de condução off-road com os MotoXplores.


Mais trilho menos trilho a Vara comeu-os a todos e chamou-lhes um figo. Até me esqueci dos 30 ou 40 Kg de bagagem mas aqueles 30 Kms eram apenas a entrada para o prato do dia seguinte. Ao longe desenhavam-se já as formas cuneiformes dos seios do deserto. Para lá delas apenas céu. Aquela era a fronteira, o fim de tudo ou o principio do resto. A Vara devorava o trilho, destemida, como barco em mar alto aproado à vaga que se aproxima. Lembrei-me do Miguel Casimiro que com uma Varadero se atreve a desafiar aquelas montanhas de areia. Que bom seria que ele estivesse aqui para me ensinar… para me encorajar. Não me sentia capaz de o imitar… ainda… mas um dia iria tentar! Um dia iria conseguir! Talvez amanhã!



À chegada ao Hotel uma manada de dromedários aguardavam-me na entrada com missivas de boas vindas. Devagarinho, entre uns e outros, cheguei ao paraíso do KASBAH TOMBOUCTOU. Por fora o edifício impressiona. Não sei bem se é um forte francês dos filmes de Hollywoold se um palácio árabe dum magnata berbere (já que os tuaregues são nómadas). Por dentro delicia. No interior a luz entra devagar, por pequenas janelas cobertas de coloridas cortinas. As paredes angulosas, de superfície irregular, cor de terra, e as camas de tejadilho em linho azul, convidam a um repouso mais intimista… dói-me a tua ausência mulher e imagino como ficaria lindo aquele quarto contigo… tenho de cá voltar. Por vezes nada faz sentido se não partilharmos e este foi um momento em que não percebi como poderia eu estar a viver aquilo sozinho.

O dia chegava ao fim. Depois duma breve visita às dunas era tempo para um banho na piscina, uma massagem no SPA, um jantar de fadas animado com musica ao vivo e um chá ao relento sob um céu estrelado que eu não sabia existir.

Amanhã iria tentar vencer o meu maior medo… a areia... hoje apenas a tinha ido conhecer!!!


Filme sem locução de texto: 3ª Etapa -1º dia 23:59

3ª ETAPA (5º dia): ERG CHEBI
Dia de descanso em ERG CHEBIL para visitas aos lugares do deserto (100% off road)

Acordei com o sol deitado. Eram 4:30 da manhã e queria ir desperta-lo. Tinha meia hora para me iniciar na cela dum dromedário que me levaria á maior duna do Erg para presenciar o nascer do astro rei. No breu da noite, tropeçando nas pedras aninhadas na areia plana, segui em silencio o guia, ou o que conseguia adivinhar dele, distinguindo apenas vagamente um turbante escuro e uma túnica turquesa. Caminhava em silencio como cobra ziguezagueada por caminhos que não via. Ao fim de alguns minutos lá estavam eles, deitados, ruminando, de celas no dorso, esperando sem pressas os seus cavaleiros. Montei receoso e com uma palmada no interruptor (o peito) o animal ergueu-se em duas violentas prestações. Primeiro as patas traseiras, colocando-me numa posição de pré queda de cabeça pendente sobre a frente do bicho, e depois as dianteiras num desajeitado saltinho e ameaçando-me de novo com o chão que naquele momento devia estar uns bons 2 metros abaixo de mim.

Começou a caminhada. Cada passo projecta-me para a frente e para trás e seguro-me desesperado à cela. Se vou andar nisto mais uma hora prefiro ir a pé. Lembro-me do meu filho Diogo e do que me ensinara sobre a arte de cavalgar… deve ser semelhante… e começo a dançar na garupa do animal acompanhando com um sensual jogo de cintura o baloiçar da bestinha. Uma dança é o movimento coordenado de dois e eu não estava a fazer a minha parte. O difícil torna-se mais fácil e até as ingremes subidas das dunas consigo digerir sem problemas. Mais um toque no interruptor (uma palmadinha no peito) e o bichinho aterra.
A beleza do espectáculo que me aguardava supera a minha modesta capacidade descritiva. Sublime é o mínimo que me ocorre dizer. O Sol em África é generoso, em tamanho e em cor. Ainda oculto, já os contornos das dunas a leste ganham uma aureola mágica, meio néonica. Depois a temperatura sobe e aquele branco azulado ganha tons de amarelos, depois de laranja e rasga a placenta da noite em matizes vermelhos púrpura. Então é vê-lo crescer sobre a linha do horizonte espreguiçando-se sem pressas sobre o breu da noite acabando por dominar todo o ambiente. Nasceu um novo dia!

E este seria um dia diferente, o dia das areias. De Vara despida de alforges e sacos parti decidido a testar os limites da minha menina… ou talvez mais os meus próprios limites. Fui pelo trilho até MERZOUGA… (sem história) e dirigi-me às dunas A sua areia não tem nada a ver com a da praia. È de cor cobreada e não tem grão. É mais um pó sem cristais de mica e feldspato que se abre sob os meus pés não desenhando pegada. Cada passo fica marcado disformemente, de contornos imprecisos pelo imediato ajustar do areal de cada vez que retiro o pé para um novo passo.
Um 4X4 acelera em direcção à duna e na primeira subidinha fica quase atolado. Recua e avança virando as rodas num e noutro sentido debatendo-se no areal que o afoga. Pouco encorajante para quem chega carregado de medos. Resolvo adiar a minha tentativa e vou contornar o Erg. São 45 Kms de pista rolante com alguns bancos de areia. De cada vez que os passo faço tudo errado… o medo apodera-se de mim e ponho a tracção às quatro rodas. Resolvo não ir na direcção da fronteira Argelina onde durante pelo menos 14 Km a areia não é a excepção . Tenho ainda de ganhar confiança. Tiro pressão aos pneumáticos. Passo de 2 para 1.6. Continuo explorando todo e qualquer caminho que me apareça e dou comigo a fazer diagonais entre trilhos por terreno virgem. Os pequenos bancos de areal são agora uma breve passagem para terreno mais firme e abordo-os com mais segurança… pelo menos não paro e me sento colocando os suplementos de tracção no chão. Rabo para trás, acelero e a roda da frente desaparece. A traseira por vezes abana mas recordo o que o Luis Lourenço me ensinou. Faço a mirada, ignoro a frente e dou-lhe gás. O Carlos dizia que os olhos e os pés é que a guiam, mais ninguém, e eu acrescento e Deus também.


De cada vez que o faço o coração agita-se indignado. Não consigo enfrentar a areia com indiferença. Os troços arenosos são curtos e pouco profundos mas são a minha primeira pequena vitória sobre mim mesmo. Talvez se passasse para 1bar me pudesse atrever numa dunazita. Mas já é tarde e não volto para trás. Talvez amanhã possa fazer a ligação MERZOUGA – ZAGORA que todos me aconselham a não tentar. Tenho de falar com o guia do Hotel e então resolverei.

O dia acaba como o anterior: Piscina, SPA, jantarinho e cama.

Filme sem locução de texto: 3ª Etapa -2º dia 12:59


4ª ETAPA (6º dia): ERG CHEBIL /ZAGORA
(70% alcatrão N12-N13-6910-6912) 250Km {total:1825 Km}

Passei a noite às voltas com um dilema: Fazer a ligação a ZAGORA por pista ou por estrada. Os guias e berberes com quem falei dizem-me que o Oued está difícil, que choveu toda a semana anterior e há lamas e muita pedra. São só 15 ou 20 Km mas a Vara está muito pesada e a minha experiencia não é muita. Fico dividido entre a razão e a emoção. Até aqui ainda não tive aventuras radicais. Tem sido tudo sob controle absoluto e ficaria desgostoso se perdesse a oportunidade de fazer um troço do Lisboa-Dakar. Tinha a esperança de encontrar mais motos a quem me pudesse juntar, mas até aqui ainda não vi nenhuma e estou no 6º dia em Marrocos. Há no hotel uns espanhóis com quem falei mas são típicos turistas, pouco aventureiros, de roteiro programado e regressam hoje a casa. Há basicamente 2 pistas, uma mais junto à fronteira Argelina e outra mais a norte, mas o guia diz-me que depois de passar o Oued o trilho divide-se em múltiplos caminhos, uns mais difíceis que outros e que é conveniente irmos com alguém que conheça o deserto. O preço está fora do meu orçamento. Converso com o meu companheiro de viagem. Não há consenso e ganha a razão. Não vou arriscar.

De Vara de novo carregada, (que diferença que isso faz), retomo a viagem. Despeço-me daqueles trilhos que percorrera várias vezes nos últimos dias. O berbere dos dromedários segue à minha frente numa bicicleta. Sigo-o sem olhar por onde. Ele acena-me com alegria e parece querer fazer-me a guarda de honra na hora da despedida. Continuo na sua roda e de repente a Vara começa a rabear loucamente… instintivamente coloco-me para trás e acelero… ela empina a frente e consigo sair… não percebo o que se passou, não vejo ali areia. O meu pensamento demora 1 segundo e é interrompido por novo alarme… de novo o mesmo rabear violento e de novo a mesma reacção… consegui sair novamente e percebo que estou num charco de lama. Por uma fracção o pânico… quero parar… por os pés no chão, mas o meu software do condução Off Road está mais refinado e cancela a ordem. O problema está identificado e a solução possível está definida. Por 300 infinitos metros a novela se repete. Quando penso que já saí descubro que afinal talvez ali à frente esteja seco, mas quando lá chego, parece magia, também tem lamaçal.

Chovera toda a semana anterior e os campos formaram pequenos charcos que com o sol criaram uma película de terra seca á superfície que se quebra agora com o peso da Vara. Por baixo dessa pele escamada há lodo maionese onde mesmo andar de pé se torna difícil. Cada metro parece-me um Km e o tempo não passa. Parece que estou nisto há horas. Continuo na minha luta. Estou quase a sair, procuro um morrozinho que me garanta alguma segurança. Está ali um. Se lá chegar estou salvo. Vou conseguir… não… estou no chão.



Não sei o que aconteceu. Quem viu diz que a moto girou 180ª sobre a frente como um raio e que uma Vara a cair é qualquer coisa de imponente. Pois pois. Agora no chão jaz imponentemente a gigante, vencida pela primeira vez nas suas aventuras Off Road. Sabia que um dia iria acontecer. Tenho o pé entalado sob moto, não me posso mexer. Acaricio-a como se de um cavalo se tratasse e aguardo ajuda. Para a tirar dali são precisos 5 homens e, sempre a gritar porque os pés nos escorregam, conseguimos arrasta-la para piso mais firme.

A violência da queda arrancou literalmente o fecho de metal do corpo da mala e quebrou o seu suporte inferior. Não tem remédio. Mas eu até queria comprar umas malas novas e a minha Vara e eu estamos bem de saúde, e isso é o mais importante. Meia hora de bricolage e lá consigo amarrar a mala à moto e seguir viagem. Andava à procura de adrenalina? Pois aí estava ela quando menos esperava… não podia então adivinhar o que me reservariam os próximos dias!!!

Tencionava à saída de Merzouga ainda ir espreitar o inicio da pista e tinha uma oculta esperança de com isso persuadir o meu colega de viagem a perseguir por aí. Claro que agora essa hipótese estava condenada. Rumei a RISSANI, ALNIF e daí para TAZZARINE pela N12. Daí para a frente podíamos talvez encontrar uma alternativa ao alcatrão.



A zona é um planalto árido a cerca de 1000m de altitude. Por vezes penso que estou no Oeste e a todo o momento espero ver surgir um índio de lança em punho num cavalo malhado no cume do monte. Faço algumas incursões em pistas abertas à beira da estrada. São pistas rolantes de belas paisagens que percorro sempre nos dois sentidos retomando o tapete negro. No final duma delas paro para almoçar e encontro o primeiro viajante de moto. Finalmente. É um francês castiço de fato bizarro com um capacete e óculos de outro filme, que viaja numa Yamaha XT 500 transformada com um depósito de 30 litros. Ficamos à conversa e encontrar-nos-emos de novo em ZAGORA.


Retomo a estrada para NEKOB e os oásis e pequenos palmeirais sucedem-se. NEKOB é um WP importante na minha viagem já que é nesta vila que tem inicio a pista Jbel Sahro de mais de 100 Km que tenciono fazer na ligação a TINERHIR. Vou espreitar e tirar informações. A pista nasce na saída norte da vila e vai serpenteando pelo vale na direcção das montanhas. Tem bom aspecto e os aldeões dizem que está boa. Veremos daqui a 2 dias!

Conheço outro francês viajante de moto. O Remy e a sua mulher viajam numa Yamaha Teneré 600 e partilharei com eles o resto da tarde e da noite. A estrada para ZAGORA é deslumbrante com o seu enorme palmeiral no Vallée du Draa. Existe uma pista pelo palmeiral que liga ZAGORA a OUAOUZAGOUR mas que não terei oportunidade de a fazer por já ser de noite.

ZAGORA é uma cidade grande, de ruas largas e com todos os recursos. Bancos, restaurantes, comercio, oficinas...

Estou a 52 dias de TOMBOUCTOU, de camelo claro, pela antiga rota comercial. 110 Km mais a sul fica MHAMID, as portas do deserto. É para lá que irei no dia seguinte determinado a ser desta vez um pouco mais audaz na areia, agora que já saboreei o amargo da maionese.

Filme sem locução de texto: 4ª Etapa 6º dia 10:29



5ª ETAPA (7º dia): ZAGORA / MHAMID / NEKOB
ZAGORA /GARGANTAS DU TODRA /IMILCHIL (alterado)
(0% alcatrão 6912-3444-3445-1903) 325 Km {total:2150 Km}

Tinha feito uma alteração no Road Book inicial. MHAMID merecia um dia de viagem.
Era o 7º dia de expedição por terras de Marrocos e regressava agora às areias do deserto.



ZAGORA é ainda uma cidade de planalto um pouco a baixo dos 1000m mas à medida que desço para sul a paisagem aplana-se até a vista se perder no infinito do areal. À entrada do desero, um trilho entra pelo Erg dentro deixando a povoação para trás. Atrevo-me a ir espreitar.



De inicio a pista é arenosa mas compacta com cascalho que me dá alguma confiança. Sigo as marcas dos rodados sem saber o destino como minúscula caravela desbravando um mar desconhecido. O meu olhar percorre o horizonte mas não é terra que procura é mais a areia... para a evitar claro. A pouco e pouco vão-se formando pequenas dunas ao meu lado. Procuro caminho entre elas e num zigue-zague constante lá vou avançando na direcção do LAC IRIQI. Sei que não conseguirei lá chegar mas não posso deixar de simular uma tentativa..




Agora as dunas ganham mais altura e no caminho tenho de vencer tapetes de areia que parecem estar em migração para a duna vizinha. Depois de novo piso mais duro. Um acampamento tuaregue à direita compõe a paisagem quebrando a continuidade das linhas curvilíneas do deserto. Um segundo mais à frente. Afinal são encenações para turistas. Cada vez são mais frequentes e mais profundas as passadeiras de areia. Até agora, quando julgo que vou perder o controle da moto, acaba o degrau de areia, a Vara estabiliza e entro em terreno seguro, mas desta vez assustei-me e ao deixar morrer o motor a frente vincou pé quase me atirando ao chão. Arrancar de novo é outro desafio. Balanço a moto para a frente e para trás para facilitar o inicio da marcha mas o pneu cava a minha sepultura. O suor escorre-me da testa para os olhos, ardendo ainda assim menos que o meu orgulho em chamas. Sinto que não sei o suficiente para continuar mas receio não saber como desistir. Tento sair da moto mas o pneu não está suficientemente enterrado para a suportar de pé. O descanso não passa no areão porque o chassis encostou. A caravela está encalhada. Deito a Vara de mansinho e fumo um cigarro. Retemperadas as forças só tenho uma saída... "pirar-me" dali e regressar. Com ajuda lá consigo arrancar de novo á “cagadinha” e pôr-me a salvo.

De regresso à base um guia indicou-me uma alternativa pelas montanhas para o LAC IRIQI atravessando o ERG EL M’HAZIL. Segundo ele esse track é acessível a motos Maxi Trail. Por onde ia seria cada vez mais difícil e ajoelhando-se na areia fez-me o mapa de todos os Ergs da região, por onde passar e o que evitar. Fiquei maravilhado e guardei o seu contacto para a minha próxima expedição. Um dia chegarei ao LAC IRIQI e marquei no mapa a lição aprendida.

Era hora do regresso que no dia seguinte tinha uma longa pista de montanha para fazer e ainda 250 Km a percorrer até lá. Fiz só 200 e dormi num albergue a caminho de NEKOB. Mal podia adivinhar como esta vila ficaria gravada nas minhas mais suadas recordações.

Filme sem locução de texto: 5ª Etapa 7º dia 10:02


6ª ETAPA (8º dia): NEKOB / TENERHIR.
(o% alcatrão)
IMILCHIL /OUZOUD CASCATAS (alterado)
(35% alcatrão N8-1903-1902-1901-1909-1811) 225 Km {total:2375 Km } nota: Dia de descanso em OUZOUD CASCATAS para visitas ás várias cascatas (100% off road)


Há 8 dias que vadiava por Marrocos e a Vara tinha-se comportado à altura das necessidades. Não era fácil controlar 300 Kg (com carga) sobre trilhos que alternavam o piso entre cascalho, terra dura rolante ou com regos, fés-fes (piso encavado como pequenas ondas de mar), bancos de areia e até lamaçais de maioneze. Sintia que até aqui a sua maior limitação tinha sido o condutor que não conseguira ganhar confiança para se meter nas dunas, arrepiando caminho sempre que o caso ficava mais sério. As dunas teriam de ficar para uma próxima viagem.

Agora aproximava-me das montanhas de TZI-N-TAZAZERT, ISK N’AIT YAZZA e mais a norte TIZI N’TIKKIT por uma pista de 100 Km, Jbel Sahro, sem saídas alternativas, que liga NEKOB a TENERHIR.

No inicio o trilho é um passeio. Engulo a pradaria em direcção ao rego cavado entre duas enormes montanhas com alegria e descontracção. O vento fresco bate-me na cara e a condução pouco exigente leva-me o pensamento para divagações. A paisagem é imensa e recordo os filmes da minha meninice, onde a Heidi corria por um campo assim com as montanhas como fundo de cenário. Só não têm neve! Começo a cantarolar as Valkures de Wagner e sinto-me num filme de aventuras. Um Berbere empurra a sua lambreta com o pneu da frente vazio. Não está furado, apenas perdeu o ar pela jante empenada. Estamos já a 10 Km da cidade e é com evidente reconhecimento que se despede de mim depois de lhe ter resolvido o problema. Foi bom poder ajuda-lo. Tenho a certeza que, se precisar, esta gente não me virará as costas. Estamos cá todos para isso. Ajudarmo-nos nesta viagem. Melhorarmos como seres humanos, crescermos. Todos somos pequenos Deuses em aprendizagem. Fico contente.

Os Kms acomulam-se no Tripmaster. Cheguei ao fim da pradaria. À minha frente um trilho de vertente acentuada desce o planalto até um Óasis aninhado no tal rego entre as montanhas que avistara de longe. Um Oued com água serpenteia por entre as montanhas aos pés das palmeiras, e um ninho de habitações numa das margens delimita alguns talhões de terreno verdejante de cultivo. È uma miragem paradisíaca. Inicio a descida e pela primeira vez tenho de me concentrar. O piso está em mau estado, com muita pedra e algumas rochas ficaram a descoberto com as recentes chuvadas. A vertente é acentuada e à direita o monte desenha-se a pique numa ameaçadora queda de várias centenas de metros.

Mas chegar ali já é um prémio que por si só justifica tudo. De novo as crianças correm para a moto. Uma menina pendura uns brincos na Vara. São feitos de fio de lã colorida e olha-me com os maiores olhos que já vi, na ansiedade da minha resposta. Apaixono-me por ela. É inteligente e a principio tenta negociar tudo. Quer uma foto minha?... São 10 dirham! Quer uma romã?... Mais 10 dirham. No fim passo uma boa meia hora ali, trocando prendas, tirando fotos, saboreando aquela pequena deusa escondida do mundo e disponível só para mim. Vale a pena visitar este lugar, mesmo que se regresse de imediato.

E era o que talvez devesse ter feito porque os próximos 20 Km já me iriam exigir muita condução. O trilho alterna constantemente de piso. Atravessa vários oueds secos de pedra grada e roliça com bancos de areia á entrada ou á saída. O trilho sobe e desce entre curvas apertadas e a areia surpreende-me constantemente. Tiro pressão aos pneus. Sinto-me mais confiante e depois de MHAMID aquilo já não me assusta… mas é preciso não facilitar.

Chego ao albergue RAD-N-ALI ladeado por duas fálicas formações rochosas do mesmo nome. Nunca imaginaria que no fim de 30 Km de maus caminhos encontrasse um sitio para almoçar e descansar. Ainda bem porque os safanões destes últimos 20 Km avariaram a minha câmara de filmar, fixa no suporte do guiador. Vou tentar repara-la e almoçar qualquer coisa.

100 metros á frente outro albergue com uma Norton dos anos 60 parada à entrada. Entro á procura do aventureiro e encontro um jovem casal suíço. O homem está prostrado, sem acção, despejado sobre uma cadeira, pernas penduradas, cada uma na sua direcção, um boneco de trapo. Ela parece que há muito ficou sem fala. As palavras saiem-lhe arranhando a garganta e junto aos seus pés descalços jazem umas botas de montanha. “Voltem para trás” foi a única frase que proferiu e eu estupidamente respondi com uma gargalhada. Ir-me-ei lembrar dela dezenas de vezes nas próximas 48 horas. Contaram-me então que o trilho estava em péssimo estado e que ela tivera de fazer dezenas de kms a pé, ao lado da Norton, enquanto ele arrastava como podia a moto de pedra em pedra. Sorri confiante e retorqui: “Se vocês conseguiram… eu vou conseguir também” e montando a Vara arranquei destemido pela montanha a cima.

Foi a ultima vez que sorri nesse dia.


Começo a minha escalada. No horizonte só vejo montanhas como unhas rasgando a neblina que as envolve numa teia de algodão. A maior tem o cume a 2712 metros mas eu não ultrapassarei os 2200. O trilho vem-se empinando e cada metro é lido e processado na minha cabeça registando a melhor linha. A informação chega em catadupa e eu tento processa-la no meu Intel Cerebral á velocidade da luz. A subida não tem fim e serpenteia pela montanha com curvas de 180º, apertadas, de “releve” negativo sobre pedra solta do tamanho de bolas de football. Entre elas estreitas passagens de gravilha ou de areia. Lembrei-me dum exercício do Curso dos MotoXplores que aqui se aplicava na integra. Faço o trilho por segmentos procurando uma zona plana ou de piso estável para parar e descansar. Respiro fundo, olho o próximo segmento e arranco de novo. Um atrás do outro os km vão-se somando e a tarde vai avançando.

Um grupo de ciclistas de BTT desce a vertente. Riem-se, chamam-me louco. “De BTT já é difícil, de Varadero é preciso tê-los muito grandes” dizem entre gargalhadas. São um grupo de 8 mas 3 já foram para o carro de apoio… dizem-me que o trilho vai piorar mais para cima e que a descida não é mais fácil. Fico preocupado. Piorar mais? Como é possível?... devia voltar para trás mas não quero repetir os últimos 30 Km. Mais um esforço de 10 ou 15 Km e talvez tudo melhore. Lembro-me dos suíços e algo dentro de mim me diz que não devia teimar nesta aventura.

Sigo viagem. As vertentes são cada vez mais altas e as chuvas descarnaram por completo o piso. O trilho piorou mesmo! A encosta em osso veste-se agora de placas de pedra formando escadas por vezes de arestas vivas. Encontrar uma linha menos agressiva obriga-me a ir demasiado próximo do precipício o que me parece um mal ainda maior.

Começo a estar exausto. Deixei os suíços há 3 horas e fiz uns 30 Kms julgando sempre que eram só mais 5 ou 10 Km deste piso demolidor. Mais uma vez lamento não lhes ter dado ouvidos. Tenho cerca de 50 Km feitos dos 110 Km da totalidade e a tarde já vai longa. Tenho mais 1 hora de luz… não vou conseguir.

Continuo a subida. As condições pioram. Agora são poucas as zonas onde posso parar descansado porque as lajes e os pedregulhos sucedem-se quase ininterruptamente. Não dá para escolher uma linha. Qualquer linha é má e a menos má é a que estiver mais afastada do precipício. Faço uma mirada longa. Não vale a pena negociar cada pedra com jogo de embriaguem… tenho de sair dali. A Vara salta de pedra em pedra projectando os seus 300 kilos no ar e obrigando-me a segurar firmemente o punho da esquerda largando a embraiagem. Também não preciso dela. Sigo agora mirando apenas o destino onde poderei fazer uma pausa e acelerando até lá chegar. A minha vista procura uma placa maior e plana para parar e a Vara lê-me o desejo projectando-se de pedra em pedra até lá. Por vezes o safanão do embate da roda contra a aresta do “degrau” força-me a agarrar-me com todas as minhas forças ao guiador provocando acelerações bruscas que quase me catapultam pelo ar. São momentos breves que acabo dominando encontrando o equilibrio a força e a direcção certas para o proximo coito. Lembro-me do curso Off Road e lamento não ter sido ainda mais duro. Julgava ter levado em Avis a minha Vara aos seus limites, mas aquilo afinal não tinha sido nada de especial. Lembro-me do Carlos Azevedo, do Luís e do André, meus instrutores e amigos da MotoXexplores e estou no limite de todos os meus limites. Tenho de sair dali… se partir a moto choro-a depois, agora temos de ser a melhor equipa ou estou “lixado”. A Vara reponde-me com bravura. A nova suspensão da Toratech está a fazer o seu trabalho, amaciando os embates mas não esgotando o curso. Chego á minha placa de coito e aliviado de novo faço uma paradinha. A moto para e ponho o pé... no vazio... para a sustentar e... Estou no chão!

Recordo de novo o Carlos Azevedo. “Quando ficamos exaustos a cabeça é a primeira a parar”. Pois é… já não estou a ser capaz de processar tudo em tempo útil. Esqueci-me de verificar de que lado tinha chão, só me preocupei em parar naquele bocadinho de "céu" e zás… a menina deitou-se.

Levantar a Vara consome-me as ultimas energias. É tão fácil sem malas, sem 50 Km de tareia nos braços e nas pernas… mas agora, mesmo com ajuda, é um osso duro de roer.

Retomo a minha guerra. O problema não é cair… o problema é não levantar…e prossigo a minha corrida contra o tempo. Falta menos de 1 hora para o por do sol. Eu só quero chegar ao tal Albergue e dormir toda a noite.

O trilho não desarma e os pinotes na vara são cada vez mais violentos. Olho para trás e nem acredito no caminho que já fiz. Qual Cirque de Jaffar qual carapuça. Se ontem me dissessem que eu iria fazer aquele trilho com a minha Vara Selvagem eu não teria acreditado. Não acreditaria que eu fosse capaz de o fazer e que a Vara fosse capaz de o suportar.

Continuo por mais um segmento... e outro. Descanso e deixo a moto encostar ao morro entalando-me o pé. Estou exausto… A respiração ofegante relembra-me que estou a mais de 2000 metros de altitude. O fisico debate-se com a mente e recusa-se ao esforço exigido. Ganha a mente e continuo por mais outro segmento. A Vara salta de pedra em pedra como elefante de nenufar em nenufar. Cerro os dentes e não abrando espremendo ao limite a minha e a sua resistencia. Ouço o motor a subir de rotação... as rodas não estão na pedra... a Vara lançou-se no ar cuspindo-me para o chão. Acabou… Não consigo andar nem mais um metro!!!

Por terra, a minha Vara descansa por fim de tantas horas de maus tratos. Não a consigo levantar. Vem ajuda mas… não a conseguimos levantar. Tiro as malas e os sacos para ter melhor ponto de apoio mas… não a conseguimos levantar. As rodas estão assentes numa laje 20 cm acima do guiador e jamais a conseguirei por de pé assim, tenho de a tirar primeiro dessa laje. Enlaço a minha corda de montanha nos ferros de protecção da Vara e arrasto-a sobre a pedra até sair da laje superior. Os ferros estão lá para isso mesmo, protegerem a pele da menina, e quando se levanta está formosa e intacta como dantes. Maravilha.

Irei passar ali a noite e continuarei de manhã. A viagem terá agora uma pausa até ao dia seguinte, mas a adrenalina não terminaria por hoje. A noite reservava-me ainda algumas aventuras.

Olhei á minha volta agora liberto do stress da pista. A paisagem é arrebatadora. Não há melhor forma de viajar. Respiro fundo recompensado.

Preparo-me para montar acampamento mas desisto de montar a tenda. Não há 1 metro quadrado de piso plano sem uma saliência rochosa. Terei de dormir ao relento no saco cama. Temos comida para o jantar e para o pequeno almoço, mas apenas 30 cl de agua. Durante o dia bebemos 4 litros e eu continuo cheio de sede. Temos de racionar a agua.

A noite caiu. Enquanto um arroz cozinha no fogão de campanha, consulto o GPS. Devo estar muito próximo do fim da subida onde os ciclistas me disseram haver um albergue. Ponho o GPS e o rádio intercomunicador no bolso, marco um WP para o regresso, coloco a lanterna na cabeça e o forro no blusão e entro pela noite dentro à procura de ajuda.

Caminho uma hora por entre a escuridão da noite. De vez em quando ouço um silvar arrepiante que me lembra uma serpente negra que encontrei morta umas horas a trás. Caminho arrastando ruidosamente as botas para afugentar más companhias. Ao fim de 3 ou 4 km encontro o Albergue. Compro 3 garrafas de agua e inicio a descida. Pelo caminho vou comunicando por rádio com o Jorge, o meu companheiro de viagem. Vou tropeçando de pedra em pedra que as pernas já não me obedecem. A descida parece-me não ter fim até que vejo uma luzinha perdida no mato. É o Jorge que me acena no nosso “acampamento”.

A noite vai avançada e depois dum xiripiti escocês preparamo-nos para dormir quando vemos aproximar a luz duma lanterna. È o homem do albergue que veio oferecer a sua ajuda. Bebemos mais um gole de scotch com ele e ficamos à conversa por breves momentos que o corpo já pede cama. A primeira batalha com aquelas montanhas foi vencida mas esta guerra está ainda longe do fim. Amanhã retomarei a luta com novas energias porque o caminho faz-se caminhando.


Filme sem locução de texto: 6ª Etapa - 8ºdia 37:23


6ª ETAPA (9º dia): NEKOB / TENERHIR. (continuação) / OUARZAZATE
(0% alcatrão - N10 alcatrão)

Na manhã seguinte retomei o caminho e a crónica a escrever é mais do mesmo durante mais 30 Km. Depois aparecem as aldeias, os trilhos melhoram e vou desembocar na N10. A placa à minha frente indica-me dois destinos. OUARZAZATE ou ER-RACHIDIA a caminho das gargantas do TODRA.

O céu está carregado e já tive umas ameaças de chuva. O meu Sunto indica uma tendência para uma acentuada baixa de pressão atmosférica. A minha Vara já por duas vezes deixou de funcionar e retomou por magia.(Mais tarde descobriria que uma pedra partiu o switch do descanso lateral que por isso me corta a ignição quando perde o contacto da massa). Resolvemos alterar de novo o nosso Road Book e vamo-nos refugiar no albergue do James em OUARZAZATE onde teremos a sua oficina à nossa disposição no BIKERSHOME.


Retomei o tapete negro e confesso que com grande alegria. Compreendi então a clássica fotografia dos viajantes de joelhos a adorarem o alcatrão mas resisti a esse "deja vue". Olhei uma ultima vez para trás e despedi-me com respeito daquelas imponentes montanhas que tão caro me tinham vendido a sua passagem. Acabava maravilhado com as paisagens mas exausto com a pista Jbel Sahro.

Já tinha o Road Book todo trocado. Gastara mais um dia em MHAMID e de novo mais um dia no trilho pela montanha de NEKOB a TINERHIRT e agora afastava-me da Garganta do TODRA e da entrada para o Médio Atlas e as suas vilas de IMICHIL e AGOUDAL, mas os próximos dias mostrar-me-iam como foi uma triste mas acertada decisão. Triste porque nunca iría conseguir chegar a IMICHIL, (mais um objectivo adiado), acertada porque quem lá estava ficou sequestrado nas lamas. A caminho de OUARZAZATE o céu rasgou-se num diluvio de água e relampagos e dei graças por já estar no alcatrão e poder-me refugiar numa "Tangine" enquanto o temporal abrandava.

Chegado a OUARZAZATE a BIKERSHOME é um paraíso sem luxos mas com tudo o que um viajante de moto precisa: Uma bela oficina, uma óptima comida, um ambiente familiar muito acolhedor e uma simpatia sem limites da anfitriã (o Peter estava na Holanda). Jantei e fui finalmente deitar-me numa cama. No dia seguinte queria levantar-me bem cedo para retomar o caminho para IMILCHIL e reentrar nos trilhos de pó… ou talvez não!!!!

Filme sem locução de texto: 6ª Etapa - 9º dia 6:18




7ª ETAPA (10º dia): OUARZAZAT / DADRES / OUARZAZAT
(0% alcatrão - N10)

O dia amanheceu chuvoso e percebi que IMILCHIL ficava definitivamente fora do roteiro porque com as chuvas do dia anterior e com as que se avizinhavam, toda aquela região ficaria submersa em lamaçal tornando os trilhos intransitáveis. Mesmo assim iria até às gargantas do TODRA que com água deveriam ser ainda mais espectaculares e retornaria ao BIKERSHOME para mais uma noite.

Depois duma hora de mecânica de reparações (switch do descanso) e de manutenção (limpeza, lubrificação e afinação da corrente) retomei a estrada do dia anterior, a N10, mas desta vez teria sido melhor ter levado uma jangada. Os Oueds tinham renascido e cruzavam agora a estrada reconquistando ao alcatrão o seu leito natural.

As águas eram castanhas e deslocavam-se numa corrente impressionante. Nalguns oueds era chegar e atravessar, sem problemas, mas noutros a travessia era ameaçadora obrigando-me a uma primeira inspecção a pé para me certificar da força das aguas, da profundidade e do tipo de chão submerso na correnteza opaca. Num deles a velocidade das águas era suficiente para me desequilibrar se levantasse uma das pernas em posição de leme contra a corrente. Os carros e os camiões amontoavam-se em filas desordenadas, a confusão era geral. Alguns carros, mais impacientes, ficavam empanados no meio do leito e o povo emoldurava toda a cena como em camarotes de cinema para apreciar o espectáculo. Voltei para trás. Os oueds estavam cada vez mais cheios e não tinha a garantia, mesmo que conseguisse chegar ao TODRA, de conseguir regressar a “casa”. Iria ter de me contentar com as gargantas do DADRES. Iniciei então o regresso mas o oued anterior tinha subido muito e já não era possível passar. Estava preso entre dois cursos enfurecidos de aguas lamacentas. Alá não me queria ali. Fui almoçar para ganhar tempo e o tempo amansou a ira das águas conseguindo então libertar-me daquele Oued que me aprisionara por 3 horas e chegar por fim às gargantas do Dadres.

O dia chegava ao fim e apenas tinha atravessado Oueds para lá e Oueds para cá. Tinha percorrido 300 Km apenas para repetir um caminho, mas agora na versão “molhada Marroquina”. O DADRES era a compensação mínima dum dia desperdiçado.

Afinal acabou por não ser assim tão mínima. Vale a pena fazer o desvio de cerca de 20 maravilhosos Kms de curvas, entre formações rochosas das mais bizarras formas, para descobrir o leito do dadres cavado entre duas paredes de 200 ou 300 metros e no alto, junto do precipício, um enigmático hotel de construção berbere que de novo parece ter sido plantado na terra e emergir desta como embondeiro ainda na placenta ensanguentada da rocha mãe.

O dia tinha sido salvo nesta sua ultima hora e eu aprendera mais uma lição de África. Aqui de pouco serve fazer uma preparação muito detalhada da viagem. Há um cem numero de imprevistos que impõem as suas regras e alteram todos os planos. Era a terceira vez que eu teria de refazer o meu RoadBook.

Chegados ao BIKESHOME, encontrei dois Holandeses viajantes de moto, o Rob (de África Twin) e o Wiki (de GS 1150), gigante de 2 metros de altura e com um peso de 54 anos que já fizera duas voltas ao mundo por maus caminhos. Era a quinquagésima vez que andava pelos trilhos de Marrocos e claro que jantamos juntos.

Falei-lhes da demolidora pista de Jbel Sahro que tinha feito de NEKOB a TENERHIR e eles concordaram comigo dizendo-me que também a tinham feito uns dias antes mas não deram muito seguimento à conversa… 1 hora mais tarde, quando lhes mostrei o filme que fizera comentaram: “ Afinal fizeram mesmo a pista toda… não acreditei que o tivessem conseguido… e de Varadero” . Ganháramos uma estrela no uniforme e ficamos pelo serão dentro à conversa recolhendo informações preciosas de novas pistas para futuras expedições e sites de trail roads. Tínhamos sido aceites como viajantes Off Road e a sua atitude era agora duma generosa partilha.

Filme sem locução de texto: 7ª Etapa 10º dia 8:49




8ª ETAPA (11º dia):OUARZAZATE /AIT-BEN-HADDON / MARRAKCH
(90% alcatrão N9) 200 Km {total:2800 Km}
nota: Almoço e visita a Ait Ben Haddou


Era tempo de deixar o santuário da BIKESHOME e despedir-me dos nossos amigos e da anfitriã com uma sentida promessa de regresso.



O próximo WP era o Ksar AIT-BEN-HADDON, "cidade fortificada", junto às antigas rotas entre o Saara e Marrakech. Ao longo do rio Ouarzazate com os seus belíssimos kasbahs (fortificações ) ergue-se um conjunto arquitectónico único classificado Património Mundial da UNESCO. As suas muralhas de tijolos de argila misturada com água e palha transportam-me a histórias no imaginário de rigorosos invernos e barbaras invasões que terão em tempos defrontado na protecção das suas populações. Hoje a maioria dos habitantes da cidade vive no outro lado do rio, e as poucas famílias que ainda resistem no seio da Ksar contam-se pelos dedos. Para lá chegar, um trilho empoeirado à entrada da nova cidade faz-me esquecer as suas mordomias turísticas e envolve-me no habitat próprio do Ksar, mas para o visitar, uma escadaria de alguns milhares de degraus faz-me hesitar e fico-me por uma contemplação exterior. Como um pouco por todo o Marrocos, as tendinhas de “recuerdos “ com os seus persistentes vendedores tentam aliciar-me, mas depois de 11 dias em Marrocos, dificilmente me convencerão… a não ser que tenham uma serpente para eu brincar ou um lagarto gigante para me acariciar o pescoço!

Rolava agora pela N9 em direcção a MARRAKECH e esta foi claramente uma das alcatroadas mais bonitas que percorri em Marrocos. É uma estrada de montanha, de bom piso, onde as curvas me convidam a uma condução mais desportiva, interrompida por vezes pela necessidade de contemplar a paisagem. A estrada vai serpenteando pelas entranhas da montanha, entre dois picos de 3320 e 3580 metros a norte e sul respectivamente. No seu ponto mais alto, a 2260 metros o COL DU TICHKA convida-me para um chá quente… e é irrecusável porque aqui a temperatura desceu a pique e dos vinte e poucos graus do sopé devo estar agora com temperaturas de um só digito.

Depois inicio a descida… e que descida! A estrada desenha-se pelo horizonte numa linha a perder de vista… lembrei-me da Muralha da China vista do espaço. Parece não ter fim… desce… desce… desce, e por vezes vejo um homem de pedaleira que incrivelmente irá subir… subir… subir. Desço o dobro do que subi porque OUARZAZATE donde parti já tem uma cota elevada de planalto.


Finalmente chego a MARRAKECH. Procurar hotel é uma aventura com o “pára-arranca“ constante num transito ainda mais caótico que FÉS e mais de um milhão de habitantes que parecem ter vindo todos para a rua. Encontro por fim um, perto da praça Djemaa (que pretendo visitar á noite), de preço acessível, instalações razoáveis e com garagem como pretendia… mas quando quis parquear a minha menina no conforto seguro do seu quarto (leia-se garagem), tive de entrar com a moto pela entrada principal do hotel, passar frente à recepção e procurar um cantinho numa pracinha no interior, tipo quintal Andaluz com uma fonte ornamental no centro. “Esta-se bem”… é da maneira que tem guarda de borla.

A noite na praça DJEMAA é uma experiencia única. Acrobatas, contadores de histórias, vendedores de água, bailarinos, músicos, aldrabões, barracas de alimentos e um imenso restaurante ao ar livre que se estende por varias tendas numeradas. No ar os vapores das Tangines guisadas misturam-se com os óleos queimados dos fritos e as carnes grelhadas das Brochetes. Nas mesas uma mescla de vestimentas, usos e costumes. Há de tudo desde sexy meninas loiras de shorts e tops de aspecto germânico ao casal ortodoxo árabe de “turba” na cara dela e longa barba na cara dele… e no meio deste mundo agitado o Manuel Salgado e a Isabel repastam calmamente degustando umas deliciosas entradas marroquinas. È bom encontrar amigos da família Varadero a 2000 Km de casa! Abraços, beijinhos, dois dedos de conversa, a foto da praxe e procuro o meu jantar.

O resto da noite foi a vadiar pela cidade… mas pouco, que no dia seguinte queria regressar ao campo, conviver com a Natureza, ouvir as águas das cascatas de OUZOUD e talvez despedir-me dos trilhos de Marrocos…por agora…que se aproximava o regresso.


Filme sem locução de texto: 8ª Etapa 11º dia 13:00




9ª ETAPA (12º dia): MARRAKCH / CASCATAS DE OUZOUD / CASABLANCA
(100% Alcatrão )


Esta seria a última etapa de visita a Marrocos. No dia seguinte partiria de Casablanca para Portugal numa super tirada de 1500 Km (+-). A saudade começava agora a desviar a minha atenção. Saudade da minha filha Laura, da mãe da Laura, do cheiro a maresia da minha rua, da cor do mar e do som das ondas, dum cozido à portuguesa ou duma posta de bacalhau, e de todos vocês, meus amigos, com quem ansiava partilhar um saco repleto de vivencias e aventuras.

Fiz-me á N8 com um sentimento de despedida e uma já ténue expectativa de aventura. O caminho não acrescentou nada de novo ao Marrocos que já conhecia e apenas quando sai da estrada principal reencontrei como epílogo desta minha expedição, algumas estreitas vias de precipícios ameaçadores, curvas com areias e bermas rendilhadas de pedra.



Cheguei ás Cascatas de OUZOUD julgando que iria encontrar um vasto olival (tradução do nome OUZOUD) com várias cascatas para visitar por trilhos rolantes por entre vilas e campos. Encontrei um pequeno lugar, apinhado de casas de artesanato, com uma escadaria para descer à base da 2ª maior cascata de África (dizem… a maior fica na África do Sul). O acesso de escadas escorrega pelo monte por entre oliveiras e macacos que saltam entre os ramos das árvores fazendo acrobacias… até receei que no fim me viessem pedir 10 dirhams. Pelo caminho barracas de artesãos e de comida. No fim uma esplanada-restaurante com vista privilegiada para as cascatas onde me despedi da gastronomia marroquina. Agradável mas não são as cascatas de Niágara. Se passar perto voltarei, mas não justifica um grande desvio no roteiro!

A viagem para Casablanca fica-me marcada na memória pela N11 feita de noite, onde cada camião tem sempre pelo menos 10 faróis para garantir que me encadeia mais que eu jamais o conseguirei fazer, mesmo com as minhas luzes de Xénon e faróis suplementares. Nem vale a pena reclamar. Encontrar um Hotel com vaga, que fique no orçamento previsto (700 dirhams não é um orçamento apertado nestas paragens) não iria ser fácil em CasaBlanca. Ou me disponho a gastar muito ou terei de me contentar com um de estrelas fundidas. Casablanca está sempre cheia… em todos os hotéis vejo camionetas de turistas a descarregar euros, libras e dólares. Terei de pagar a um táxi para me indicar um com uma cama livre para esta noite.




A AVENTURA

CHEGARA

AO FIM…


SÓ FALTAVA

REGRESSAR!










Filme sem locução de texto: 9ª Etapa 12º dia 12:24

10ª ETAPA (13º dia): CASABLANCA/ RABAT/LISBOA


Regresso sem história... alcatrão, mais auto estrada, mais alcatrão!


NOTAS FINAIS :


NÚMEROS:

Paises visitados: 3
Continentes: 2
Kilometros percorridos: 4830
Litros gasolina (+-): 300
Consumo médio: 6,6 litros/100
Dormidas e refeições: 475 €
Gastos combustível: 317 €
Barco : 114 €
Outros gastos: 268 €
TOTAL: 1114 €

LIÇÕES: Um dia li algures na Net que havia três tipos de viajantes. Os que preparavam minuciosamente as suas viagens (foi o meu caso), os que apenas tiravam tópicos e ainda os que arrancavam à deriva. Aprendi que em África toda a planificação detalhada serve apenas para antever o que seguramente não vai acontecer. Ou porque chove e a pista fica em lama e as ruas alagadas, ou porque aquela fabulosa pista já foi alcatroada, ou porque se caiu na véspera e se perdeu 2 horas a arranjar a moto ou… ou… haverá sempre um imprevisto a alterar o Road Book.

Aprendi que o estado duma pista só é realmente conhecido quando entro nela. O que me dizem os locais vale pouco, sobretudo em pistas de muitos Kms.


Aprendi a ouvir os avisos dos viajantes que já fizeram aquela pista. Somos todos muito semelhantes e o que é um inferno para eles dificilmente será um paraíso para mim.


Aprendi que perante uma dificuldade excessiva continuada a insistência só agrava o erro e o risco. Saber quando voltar para trás... é o que se tem de fazer frequentemente quando andamos mesmo por maus caminhos.


A VARADERO é uma grande moto. As suas limitações são comuns a outras MAXI TRAIL e com a vantagem duma mecânica mais simples.


AGRADECIMENTOS: Esta viagem não teria sido possível sem a participação, directa ou indirecta dalguns amigos e entidades que não poderia esquecer.


OBRIGADO MOTOXEXPLORES pelo vosso extraordinário curso de formação Off Road sem o qual não teria seguramente ultrapassado algumas das dificuldades das pistas mais demolidoras. Foram muitas, mas mesmo muitas, as vezes que o Carlos o Luís e o André estiveram a meu lado nas montanhas do Atlas e nas areias do deserto indicando-me soluções, estimulando a minha ousadia.
OBRIGADO Rui Baltazar da TOURATHEC PORTUGAL pelo precioso apoio prestado na preparação da VARA. Foi com muito orgulho (e proveito) que a minha Vara se passeou durante 15 dias vestida com as vossas cores.
OBRIGADO NOMADS que tantas dicas partilharam comigo, sugerindo pistas, albergues e locais de interesse. Vocês entraram-me no sangue já contaminado envenenando-o ainda mais com este delicioso vicio de viajante vadio.
OBRIGADO MOTOCHICANE pela cuidadosa preparação mecânica que efectuaram na Vara que se comportou durante 5000 duros Km como se tivesse menos um zero no conta-Kilometros de vida.
OBRIGADO companheiros do CLUBE VARADERO DE PORTUGAL que dispensaram todo o entusiasmo e carinho a esta aventura e em especial ao Mário Santos e João Valente pela vossa partilha de experiencias, pelas horas gastas à volta dum mapa que tanto me ajudou a seleccionar um roteiro.
OBRIGADO JORGE RAMOS, companheiro de viajem, cúmplice da minha aventura e amigo para sempre. O destino aproximou-nos e África uniu-nos. Fomos uma equipa, uma boa equipa.
OBRIGADO “ALÁ” por me teres dado uma família fantástica que me apara com ternura as minhas loucuras e teres cruzado no meu caminho gente tão bonita.